O Homem que Fazia Cestos
Desenho Tinta da China sobre papel 32x24cm
Num dia igual a outros, dirigia-me para casa e, ao fazer a rotunda da Moita, olhei naturalmente para o terreno baldio que continua a existir, paredes-meias com a catedral de consumo ali implantada. E reparei nela.
Estava junto às cinzas das inúmeras fogueiras acesas durante o Inverno, no que me pareceu uma posição tranquila de descanso, indiferente a quem passava, um tímido raio do sol da manhã a acariciá-la.
Passados uns dias, não sei se muitos, porque à medida que envelheço, os dias ficam pequenos para fazer as coisas importantes que fui adiando, voltei a vê-la.
Passava, lentamente, em frente da taberna, sem olhar para nenhum lado, os olhos, melhor, todos os sentidos agarrados às pedras da calçada. Pareceu-me mais magra e suja.
Atravessou a rua com o seu passinho miúdo, não olhou sequer para dentro do quartel da GNR, seguiu em frente, fez a curva que a levou à ponte sobre o rio da Moita, deteve-se durante alguns segundos e continuou a caminhada até ao local onde, pela primeira vez, a tinha visto sem companhia.
Confesso que a sua imagem esguia, o seu andar algo incerto, ficaram gravados no meu espírito, traduzindo uma sensação amarga de esquecimento e abandono.
Passados mais alguns dias, voltei a encontrá-la. Estava sentada junto às palmeiras do largo da praça. Pareceu-me ainda mais magra, dando a sensação que só a pele segurava o seu frágil esqueleto. Mas estava vigilante: procurava com o olhar alguém que nunca mais aparecia. Quando se voltou para mim, nos seus olhos vi todo o desespero do mundo.
Esse olhar atingiu-me como se tivesse disparado um dardo que mais do que atingir o coração, me abriu a cabeça, numa súbita compreensão do drama.
"Morreu, ou está internado no hospital, ou, ainda pior, no asilo, esse arquivo de mortos adiados. Estará preso?"
Se morreu, só Deus pode ressuscitá-lo.
Senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz: "Soltem-no!".
Esse homem não é um vadio. Nem pode ser um criminoso: tem tanto amor para dar. Eu sei que veste roupas andrajosas, está sujo, cheira mal, a suor e a vinho. Mas não pedia esmola: vendia o produto do seu trabalho. Estou pronto a testemunhá-lo. Comprei-lhe muitos cestos de cana que tenho em casa, como prova do que afirmo.
Apreciei, algumas vezes, nas manhãs frias de Inverno, ele junto da fogueira, perto da barraca onde dormia, a cortar e a alisar as canas que utilizava no fabrico dos seus cestos, com os quais, julgava eu, conquistava a sua independência, o seu direito de viver em liberdade.
Posso testemunhar, também, senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz, que não sei se ele comia restos ou não, o que sei é que para a sua companheira, comprava o que de melhor havia no mercado. Foi ele que me pediu, à porta do supermercado:
-" A mim não me deixam entrar. Tem aqui cinco euros. Por favor, compre duas latas de Pedigree para a minha cadela."
Ouviram, senhores Médicos, Juízes, Guardas: Soltem-no!
Senhores da Liga dos Direitos dos Animais: a cadela ainda lá estava ontem, à espera. Recusa-se a comer.
Apressem-se! Temos pouco tempo para os salvar!
terça-feira, 11 de maio de 2010
O VELHO QUE FAZIA CESTOS
[Postado por A.Tapadinhas]
Postado por A.Tapadinhas às 7:07:00 AM
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11 comentários:
António, que aperto no coração, que nó na garganta!
Que triste e ao mesmo tempo, tão bela história.
Terá o coração do homem, sensibilidade para julgar algo de tão belo e puro?
A cadela terá, com certeza, a lealdade e fifelidade de continuar a procurar e a esperar por seu dono...
Ando muito sensível para textos assim. Voce me comove...
B.B.
Aiiiiiiiiiiiiiiiii António
Que triste... mas história bela que me deu vontade de chorar!!!!
Escreve um livro comos teu contos!
Bjos
Anne
Não fica assim! A alegria é um dos melhores remédios para a nossa vida...
O outro é o amor!
Também lhe quero dizer, que pouco tempo depois da publicação desta crónica, uma funcionária do lar de idosos, contou-me que o senhor que eu referia, sempre que o internavam, arranjava maneira de se escapar. Jurava ter assuntos muito urgentes a tratar. Nunca disse quais. A senhora ficou muito comovida quando entendeu o que ele queria: ir tratar da cadela!
A vida é assim feita de coisas simples! A felicidade também: nós é que temos a mania de complicar!
BB
António
Anne: Os contos estão escritos!
Falta fazer a compilação...
Falta a editora...
Falta o estímulo, para quebrar a inércia...
Já estou a ficar com um caderno de encargos muito preenchido...
E eu que só queria pintar!
Beijo,
António
António, realmente o amor, em suas mais variadas formas, é maravilhoso!
Seja em seus escritos, seja em suas pinturas, é isso que voce derrama de forma generosa, de tal forma, que chega a inundar essa telinha de computador...
Li a respostaa que deste para a querida Anne, e reafirmo; batalhe sim, porque o que tens nas mãos, são pedacinhos do teu coração em forma de palavras. Vá atrás de um editor, e deixe que seu trabalho saia da gaveta...
Quebre essa inércia. E estímulo, nós, teus amigos, estamos aqui... de pouca valia prática talvez, mas de um gigantesco valor moral...
Ando muito prolíxa...rs
Efeito de duas semanas acamada, a sensibilidade a flor d pele...
Sem faltar um generoso B.B.
António,
Como disse a Ava, quando a gente fica acamado parece que a sensibilidade aflora. Eu estou assim, depois de um "pequeno" susto que me tirou de circulação por um bom tempo. Mas o teu conto independe do nosso estado de espírito - é, por si mesmo, muito comovente.
Espero você no "O Centauro", como dantes.
Um abraço,
Walmir
.
Ava: Há batalhas que eu já não quero travar. Não por receio de as perder, mas mais pelo pouco estimulante resultado da sua vitória...
Sinto-me bem com os carinhos dos meus amigos e amigas... não preciso de mais!
Já não tenho tempo para perder com lutas que não quero ganhar.
Reservo-me para outras que acho mais importantes...
Agradeço o teu entusiasmo, com um balaio repleto de
beijos,
António
Walmir Lima: Centauro é assim: nunca volta a cara às adversidades e, mais, sempre que é preciso, sabe vencê-las!
Bom que voltou às lides. Vou já visitá-lo!
Abraço,
António
Tuas palavras sõ sempre tão sábias...
E da sua resposta, dada com tanto carinho, carrego uma frase para meu blog. Lá ficará como testemunho de alguém que mesmo a milhas e milhas de distancia, e um oceano no meio, sabe chegar bem pertinho do meu coração.
"Já não tenho tempo para perder com lutas que não quero ganhar."
Pensarei sempre que lutas quero lutar...
Obrigada!
Tu não sabes o quanto me envolvi, terminei a leitura quase aos gritos, num tom alto de protesto a favor da pobre cadela... Lindo texto parabéns!
Obrigada pela visita querdio!!
Sigo voce!! ;)
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