quinta-feira, 24 de junho de 2010

A VISÃO DE SARAMAGO

[Postado por A.Tapadinhas]



Nos “Cadernos de Lanzarote”, diz Saramago:
“Em bem e em mal, tudo quanto dos editores se conte é sempre menos do que deveria ser contado.

Pior do que isto, é quando os editores têm opiniões, e muito pior é quando as expressam.”
Afirma que alguns editores mesmo quando aceitam o livro são “capazes de aproveitar a oportunidade para tornarem público que o autor, simplesmente, não sabe o que faz. A mim aconteceu-me esta humilhação, com Michael Naumann, que, um dia, em sua própria casa, diante de convidados, declarou alto e bom som que o Baltasar de Das Memorial, ao contrário do que eu havia escrito, não tinha morrido nas fogueiras da Inquisição e vivia feliz e contente com a sua Blimunda. Tentei explicar que seria impossível a alguém, naquelas circunstâncias, amarrado a um poste e com uma fogueira enorme aos pés, escapar com vida, mas Michael Naumann fitou-me severamente e repetiu: “Se eu digo que não morreu, é porque não morreu!”
E, logo a seguir, Saramago, interroga-se: “Desde então tenho vivido a perguntar-me se de facto não me terei enganado, se me terei esquecido de escrever as linhas que faltavam, aquelas que descreveriam a libertação de Baltazar, a fuga, a felicidade com Blimunda.”
Se tudo o que se diz de um editor, nunca chegará ao que deveria ser contado, em bem e em mal, não haverá ninguém que ouse criticar, a pessoa que, numa recensão crítica, se atreva a aventar um pensamento, um molho de pensamentos, numa conversa, que como as cerejas, vêm umas a seguir às outras, a editora, com a conselheira ou a mulher, Pilar, que até poderão ser uma e a mesma pessoa, como as que se vêem nos espelhos, que sendo as mesmas, não o são na realidade, ao sugerir-lhe, ela também, mas por maioria de razão, por estar mais próxima que qualquer pessoa, um final diferente para o “Ensaio sobre a Cegueira”.
Quem está a escrever este texto, não quer ter os louros de uma imaginação fértil, como se fosse um coelho tirado da cartola do mágico, que antes estava vazia, como vazia ficará depois de cumprir a sua missão de voltar à cabeça do seu dono, ou da terra virgem donde nasce uma flor, que, não sabendo, sabemos que estava lá uma semente, porque se lembrou do lançamento do “Ensaio sobre a Cegueira”, exactamente a 16 de Outubro de 1995, com o lamento de não poder precisar a hora em que me ocorreu o pensamento de perguntar ao laureado autor, se alguma vez lhe terá ocorrido um final diferente para o referido Ensaio, e não outro qualquer, porque não teria cabimento estar a misturar alhos com bugalhos, como poderia acontecer se eu, ao falar de coelhos, me lembrasse da competência com que o próprio se avalia ao desnocar a nuca dos pobres leporídeos com uma pancada seca do cutelo da mão…( pag. 176)
Por muito que a imaginação dos homens ainda não tenha dado sinal de esgotamento, se esquecermos aqueles escritores ou pintores, para não falar de outros que poderão sofrer da mesma doença que a seguir descrevo, que depois de escreverem um livro ou pintarem um quadro, bem recebido pela crítica, e dos quais terão recebido fartos proventos, continuam a escrevê-lo e a pintá-lo de diferentes maneiras para serem sempre iguais, ainda podemos pensar que a mulher do médico, em vez de ficar a ver tudo branco, podia continuar com a visão para acompanhar o seu marido, como fez durante a doença inexplicável de toda a gente. Não seria de admirar que, à semelhança do editor, agora poderia ser o agente artístico, logo se levantasse a sua voz a criticar o final feliz, a história cor-de-rosa, o que não seria de todo inesperado, porque todos nós sabemos que o povo tem sempre razão e foi ele que disse, Preso por ter cão e preso por não ter, de acordo com os latinos que já diziam, sabedores que eram, Vox populi, vox Dei…
Para evitar as críticas, como um maometano evita a carne de porco, seria natural que a mulher do médico, embora não goste de tratar assim a heroína de um livro, não me atrevo, se não se atreveu o seu galardoado criador, porque não quis, eu, talvez porque não posso, a dar-lhe um nome, acabasse por sentir que era desleal para os seus companheiros e mormente para o seu marido, que como se sabe também deve ser companheiro, manter o dom da visão e, se aproveitasse das competências dele para fazer a operação que a tornasse igual a todos, e prescindisse dela, dado que em ocasiões já relatadas, a tinha forçado a ver aquilo que não queria.
Esta hipótese, se acaso ocorreu ao nosso agraciado autor, seria liminarmente recusada porque como soe dizer-se, gato escaldado da água fria tem medo e seria um final que conduziria, mesmo o leitor mais desprevenido, para o conto “Em terra de cegos…” (edição portuguesa da Padrões Culturais Editora, de 2008), de H. G. Wells, em que num vale longínquo e quase inatingível, todas as pessoas são cegas há catorze gerações, e por isso já não sabem que são cegas, até chegar um viajante, que lhes fala do mundo exterior e lhes tenta explicar o que é a visão, mas sem resultados, porque também não seria nada fácil explicar a um morcego, se acaso pudéssemos comunicar com ele, que tem capacidades sensoriais como o sonar, que nem eu nem o leitor têm, apesar de o homem o ter inventado para os navios e os submarinos, e agora para as bombas inteligentes, para prescindir dos seus atributos naturais, em compensação duma visão, para ele desconhecida, de tal maneira que seria o desventurado viajante a eliminar a sua visão, como se extirpasse um tumor doentio, que não era de onde vinha, para não ficar prejudicado em relação aos seus agora e para sempre conterrâneos, como poderá confirmar um leitor mais descrente, se se der ao trabalho de ler o conto, como foi escrito pelo seu criador.
A páginas 310 do Ensaio sobre a Cegueira, a mulher do médico, a que não tem nome, o que não deixa de ser estranho para quem escreveu um livro com o título ”Todos os Nomes”, ou talvez não, se por hipótese os gastou todos, diz, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.
Um leitor mais informado, começaria a achar demasiado óbvias as semelhanças com a “alegoria da caverna” de Platão, o que não sendo um mal em sentido abstracto, começaria a ser um problema para um autor que escreveu “A Caverna”, inspirado na outra, a de Platão, se nos lembrarmos do que foi dito sobre, agora esquecemos os pintores, escritores que vão reescrevendo a mesma obra, só, e não será pouco, pensarão alguns, porque foram vendidos muitos milhares de exemplares, e ganhou alguns prémios de nomeada, talvez o Nobel.
Como por mim já foi escrito, não serei eu a outorgar-me o direito de ser considerado alguém com uma imaginação acima do mais comum dos mortais. Por isso, tenho de encerrar as hipóteses de final para uma obra, que tendo muitos finais à sua disposição, por muitos e bons motivos, como acima tentei explicar, teve o único final possível.
As últimas palavras escritas foram, A cidade ainda ali estava.
Os livros também!

António Tapadinhas

8 comentários:

Anne M. Moor disse...

Sabes António... nunca li nada dele! Falha na minha cultura :-)

Beijos
Anne

A.Tapadinhas disse...

Podes emendar essa falha rapidamente! Para uma leitora como tu, em duas horas lês um dos seus livros...

claro que não estou a referir-me ao Meemorial...
rsrsrs

Beijo,
António

Sylvio de Alencar. disse...

Muito bem vindo seu texto.
Sempre um prazer ouvir palavras deste grande escritor, citadas por vc.

Quanto ao texto..., um pouco demais para mim (um intelectual neófito...).

Abrçs.

A.Tapadinhas disse...

Sylvio de Alencar: É sempre bom ouvir os comentários...

mesmo quando pretendem não comentar!
:)

Abraço,
António

Walmir Lima disse...

Amigo António,

Muito oportuna essa tua postagem.
Eu, como a Anne, não conheço bem toda a obra do José Saramago. Na verdade, até agora, só li o 'Ensaio Sobre a Cegueira'.  Meu próximo objetivo é ler o 'Memórias de Minhas Putas Tristes' que, me parece, vai me agradar tanto quanto. 

O 'Ensaio Sobre a Cegueira' é um livro intenso que, no fundo, mostra o quanto o homem pressionado pode se despir de seu caráter.

O livro me fez refletir a respeito do que realmente importa na vida. Fiquei imaginando por que a espécie humana pode ser tão sádica e gananciosa, mesmo em situações em que o natural seria ser solidária e até misericordiosa e o quanto a natureza feminina, em particular, pode ser tão desprendida e disposta a sacrifícios para o bem dos outros. Estas, talvez, as grandes mensagens que nos quis passar Saramago nesta sua obra.

Valeu a pena, foi mesmo uma experiência instigante, cheia de valores importantes para o questionamento da nossa sociedade. Seriam eles valores essenciais, autênticos, compatíveis com a natureza humana?

É nos momentos de grande tensão em que os limites humanos estão à prova que a verdadeira natureza do homem se manifesta e este livro admirável resume nessa frase culminar:

“Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem”. 

Um abraço, António

Uma preciosidade!

Walmir

A.Tapadinhas disse...

"O livro me fez refletir a respeito do que realmente importa na vida."

Tens toda a razão, amigo!
Saramago é um escritor incontornável na literatura portuguesa, no seu sentido mais lato, na pátria que é a língua portuguesa. Foi um homem com todas as suas forças e fraquezas. A intenção desta postagem é simples: um convite para pensarmos sobre a literatura que nos legou.

Sempre me fascinou a maneira como alguns escritores jogam com as palavras e os sentimentos - Saramago é um deles. Mais tarde, transferi essa admiração para os pintores que transformavam as cores em sentimentos.

As regras gramaticais são para serem cumpridas, tal como os tratados sobre a cor. Se para escrever e pintar, bastam algumas regras, para quebrá-las conscientemente, parece-me necessário sabê-las com mais precisão - como fez Saramago.

Entre Saramago e Lobo Antunes, eu opto pelo Lobo. No entanto, li todos os livros de Saramago sem esforço, direi mais, com prazer, e do Lobo, tanto que gosto de lê-lo, e dos livros que comprei e me foram oferecendo, não completei a leitura da sua maior parte (para ser sincero li algumas páginas salteadas). Completei a leitura, com enorme prazer, dos seus três primeiros romances que, de alguma maneira, relatam a sua experiência em Angola, na Guerra do Ultramar, como Tenente e Médico do Exército Português. Dá para perceber porquê...

O Lobo actual obriga-me a estar atento; não o posso deixar por um momento, porque já sei, tenho de voltar ao princípio, farejando os trilhos labirínticos que me levaram àquele ponto. Já não tenho dentes nem paciência: preciso de presas mais fáceis de apanhar!

Onde nos levam as conversas escritas!!!

Boas leituras!

Abraço de centauro,
António

Walmir Lima disse...

Prezado António,

A exemplo desta tua postagem sobre José Saramago, nosso amigo poeta e jornalista Jorge Lemos publicou, neste final de semana, no jornal Folha de Vinhedo e no Blog dele, o Sombras e Fragmentos, uma bela matéria-homenagem ao escritor Graciliano Ramos.

As duas postagens, a tua e a dele, formam um maravilhoso e imperdível momento cultural.

Parabéns e um abraço de Centauro,

Walmir

A.Tapadinhas disse...

Walmir,
Agradeço a tua atenção ao informar-me da homenagem ao escritor Graciliano Ramos, do nosso amigo Jorge Lemos.

Vou já passar no Sombras e Fragmentos, para não perder a oportunidade de me deliciar com a sua prosa.

Abraço de Centauro,
António